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Os casos, descasos e desafios da luta antimanicomial

Publicado por João Henrique Santos em

Historicamente, a genialidade criativa — que denota habilidades consideradas ‘incomuns’ para as artes, ciência e tecnologia — a independência de corpos e ideias, a sabedoria ancestral, a não-aceitação dos padrões impostos para a época, ou até mesmo, a ambição pelo poder e disputa por heranças eram motivos suficientes para que as pessoas fossem conduzidas, compulsoriamente, aos manicômios, sanatórios e hospícios, por serem consideradas inaptas a cumprir regras ou “perigosas” para a sociedade.

Assim como a Igreja, em muitos casos, estes locais tinham como função promover a adequação social e comportamental, por meio de medidas coercitivas que envolviam práticas de tortura, terapias reversas e altas doses de medicação, com o apoio de familiares, patrões, líderes religiosos e instituições responsáveis por “manter a ordem e os bons costumes”.

Neste espaço de imobilização, perda de consciência e identidade, também conviviam aqueles que, de fato, haviam nascido ou desenvolvido transtornos mentais, emocionais, e/ ou deficiências motoras e cognitivas, mas que necessitavam de cuidados específicos e olhares mais acolhedores, os quais foram o sentido da vida de profissionais como a psiquiatra Nise da Silveira, um expoente na luta pelos direitos à dignidade de PCDs e respeito às questões de saúde mental.

Na década de 1970, a cidade de Barbacena, Minas Gerais, foi palco de um dos acontecimentos mais atrozes da história nacional contemporânea, revelando as condições e tratamentos destinados aos pacientes de hospitais e clínicas psiquiátricas do país.

Em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia realizou uma visita ao Hospital Colônia — fundado em 1903 e considerado, por anos, o maior hospital psiquiátrico brasileiro — e deparou-se com um cenário desolador: estruturas decadentes, insalubridade, superlotação, pessoas de diferentes idades e gêneros em acomodações coletivas, quase nuas, rodeadas por animais domésticos e peçonhentos, além de dejetos e restos de comida.

Não bastasse a triste e caótica realidade do local, os internos eram diuturnamente agredidos, violentados e expostos a técnicas e experimentos ainda mais desumanos, além dos maus tratos que os levava à morte. Anos antes, em reportagem ao jornal “O Cruzeiro” (1928 – 1975), o jornalista José Franco e o fotógrafo Luiz Alfredo relataram as situações observadas na reportagem “A sucursal do inferno” (edição de 13/05/1961), com uma sequência de imagens chocantes.

Marcado para sempre na história da luta antimanicomial em nosso país, o episódio ficou conhecido como “Holocausto Brasileiro”, tamanha a crueldade das medidas aplicadas (similares às realizadas nos campos de concentração nazista) e a quantidade de vidas ceifadas: segundo as investigações, o número de mortos em Barbacena foi superior a 60 mil, entre idosos, mulheres e crianças, que, em sua maioria, não apresentava diagnóstico para transtornos mentais.

Os detalhes e análises dos casos, evidenciando as atrocidades, as vítimas e sobreviventes, resultaram em reportagens e diversas produções ao longo dos anos, dentre elas, os livros “Colônia: uma tragédia silenciosa”, de Jairo Furtado Toledo e Edson Brandão (2008) e “Holocausto Brasileiro: Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil”, de Daniela Arbex, que também dirigiu um documentário sobre o tema, em parceria com a HBO.

Após o fechamento do Colônia no final dos anos 1980, o local passou por reformas e atualmente abriga o Museu da Loucura, revisitando um passado que jamais poderá ser esquecido.

Anchieta: dos horrores à ocupação

[…] Nas dependências do hospital-abrigo, os internos se apinhavam em grades e galpões, utilizando latões como pratos e latrinas. Condições sub-humanas, que do lado de fora manifestavam-se em gritos, choros e assustadoras gargalhadas. Sinais da ‘loucura’, produzida pelas sessões de eletrochoque, doses cavalares de tranquilizantes e banhos coletivos gelados em noites frias.

A balbúrdia já não tinha mais CEP, CPF e registro de nascimento: mulheres não mais amadas, grávidas indesejadas, pretos, pardos, favelados, drogados, arruaceiros e bichas-travestis. Artistas, autistas, pessoas com esquizofrenia, dislexia, Síndrome de Down e depressão. Eram mais de 600 corpos sem alma e sem esperança na “cidade sem lei”, que cabia pouco mais de 200 deles […]

Os fragmentos acima poderiam ser parte de alguma obra dos autores José Lins do Rego e Guimarães Rosa, que escreviam sobre as mazelas cotidianas, mas foram produzidas exclusivamente para este texto, de forma a utilizar a arte para elucidar outro capítulo triste dessa história.

O relato em forma de trechos literários aconteceu em Santos, litoral de São Paulo, na Casa de Saúde Anchieta, conhecida como ‘Casa dos Horrores’. Após diversas denúncias, os casos de negligência, maus tratos e abandono ganharam as páginas dos jornais em 1989, resultando na comoção popular, intervenção e fechamento do local, por determinação da então prefeita do município, a vereadora Telma de Souza.

Anos depois, o prédio passou a ser utilizado como moradia de cerca de 70 famílias, que há mais de 20 anos convivem com o risco de despejo, já que a construção é particular.

O estudante de psicologia e filosofia Samuel Bittar é um dos apoiadores da “Ocupação Anchieta”, desenvolvendo trabalhos voluntários relacionados à redução de danos, arte e cultura. Em suas práticas, Bittar utiliza de suas experiências pessoais para tratar dos assuntos de forma sensível e humanizada.

 “Fui um adolescente que adoeceu, ficou deprimido e ansioso. Meu interesse pela luta antimanicomial se aprofundou após ter passado dos 16 aos 19 anos experimentando drogas antidepressivas, estabilizadores de humor e benzodiazepinas para melhora do meu quadro de depressão. Nada funcionava e a alternativa que restava era um tratamento polimedicamentoso, ingerindo diariamente, seis drogas diferentes”, conta.

Durante esse processo, Samuel, atualmente com 25 anos, encontrou nos estudos, na arte e na produção de conteúdo audiovisual, formas de expressar suas angústias e incômodos frente às situações que o desafiam na busca diária pelo equilíbrio emocional e os cuidados com a saúde mental.

“Minha relação com o movimento foi também uma tentativa de buscar saúde. Na época, aos 17 anos, realizei uma série de vídeos no Youtube sobre redução de danos a partir de referências científicas. Teve vídeo com mais de 8 milhões de visualizações, foi impressionante e assustador. Hoje, mais maduro, entendo que a dimensão das pautas da luta tem um peso estrutural e profissional”, explica.

A luta, os movimentos sociais e seus desdobramentos

No final da década de 1970, a articulação de profissionais da saúde e assistência social, acadêmicos, instituições e demais representantes da sociedade civil culminou nos primeiros passos da luta antimanicomial, com a implantação do Movimento da Reforma Psiquiátrica, impulsionado por dois importantes eventos realizados em Bauru e Brasília, nos anos de 1987.

As discussões sobre a violência psiquiátrica, violação de direitos e suas consequências evidenciaram a ineficácia das práticas adotadas até então, tanto para a reinserção dos pacientes em sociedade quanto ao entendimento a respeito das doenças mentais.

A partir dessas reflexões, o dia 18 de maio ficou marcado como o Dia da Luta Antimanicomial, com o amparo da “Lei Paulo Delgado”, de número 10.216/2001, que garante os direitos à vida e proteção de pessoas com transtornos mentais, por meio de práticas mais respeitosas e inclusivas. A determinação também resultou no fim dos manicômios no país, dando lugar aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Junto à universidade e coletivos, Samuel Bittar desenvolve pesquisas relacionadas ao passado, presente e futuro destes equipamentos e suas funções.

“O manicômio foi e é um lugar histórico destinado para aprisionar e perseguir a partir da patologização as formas dissidentes de sexualidades e gêneros, das mais diversas formas de controle sobre as mulheres, a juventude, os usuários de drogas e especialmente a classe trabalhadora não produtiva para o capital. Como dizem as vozes da cabeça de alguns por aí: ser louco numa sociedade que adoece, é sinal de saúde resistente”, considera.

João Henrique Santos – Mtb 73513
santos.joaoh@gmail.com